segunda-feira, 18 de abril de 2016

O Tríptico


O Dr. Silvino Silvestre, advogado e director do colégio da Vila, deu um murro na secretária de mogno e o tampo de vidro explodiu, qual bomba, sob o olhar perplexo de Dona Albana Infante, a vigilante do colégio. Estava furioso e não era razão para menos. Nessa tórrida manhã de Maio de 1960 com um vento suão que se metia pelos ossos, tinha aparecido desenhado, a todo o comprimento do tampo da mesa da sala de alunos, o membro dum equídio. Os respectivos acessórios, isto é, os testículos do animal, eram de tal forma descomonais que caíam, em folhos, pelas abas da mesa. A ira do Dr. Silvino, porém, devia-se mais às evidentes implicações que todo este imbróglio ia provocar na Vila do que à própria natureza do desenho. Homem de sensibilidade requintada, quando passou os olhos pelo desenho, alertado por Dona Albana para aquela obscenidade, assim que, ainda ensonado, chegou ao colégio, vislumbrou o traço correcto, as sombras impecáveis e a perspectiva tridimensional perfeita daquele tríptico surrealista. E, murmurou:
            - Um chalado com classe, um artista em potência. Qual é o significado deste desenho?
Dona Albana, notou o quase imperceptível movimento dos lábios do Dr. Silvino.
            - Senhor Doutor é urgente que se actue em conformidade.
            - Concerteza Dona Albana.
            - O que vai fazer Senhor Doutor?
            - Um inquérito aos alunos. Declare, por favor, a suspensão das aulas por hoje, mande as meninas para casa e convoque todos os alunos para um interrogatório esta tarde, a partir das 14h.
            - Muito bem, Senhor Doutor.
O Dr. Silvino foi almoçar, agoniado. Lembrou-se que dias antes, naquela mesma mesa do restaurante habitual, após uma farra monumental com amigos da Vila, pelas 3h da madrugada, apareceu uma patrulha da GNR com a declaração, detalhada, de uma multa por deficiente estacionamento do seu automóvel. Com os olhos enevoados pelo absinto que não perdoava, sacou dum lápis vermelho da sua descambada pasta, pegou na declaração e escreveu: "Três erros de ortografia. Reprovado!". O incidente foi de imediato sanado, com um sorriso subserviente da patrulha.
            - Como posso eu, Silvino, irreverente, teimoso, amante da independência, da boémia, da contradição, do espírito de humor, julgar um aluno que, afinal, fez um “manguito” monumental, de cariz campestre, a todos nós e à situação constrangedora deste País de merda?
O Dr. Silvino remoia as suas interrogações com um carapau frito em molho de escabeche. E, recordou, que dois anos antes, em 1958, tinha proibido, por imposição superior, a saída dos alunos do colégio quando Humberto Delgado, em campanha eleitoral, visitou a Vila.
Dona Albana Infante era uma "instituição" dentro do colégio. Mulher respeitável, quase com setenta anos, não descuidava as “suas meninas e os seus meninos”. Na qualidade de vigilante do colégio misto comandava, entre outras coisas, os recreios e garantia, aparentemente com extrema rigidez, a separação dos sexos. Contudo, fazia olho grosso aos namoricos e deliciava-se a entrever futuros risonhos!
Filipa Romana era uma das alunas do colégio. Nos seus quinze anos, esbelta e de olhos verdes, inspirava juras de amor eterno e poemas exaltados. Quando Dona Albana transmitiu a ordem do Dr. Silvino para as meninas irem para casa, Filipa escondeu-se num armário da casa de banho.
Enquanto o inquérito aos alunos decorria, Filipa entrou na sala de alunos e ficou estupefacta ao olhar para o enorme tríptico. Tal como Silvino, reconheceu de imediato uma mão de artista na animalesca gravura.
- Raios me partam se isto se pode perder. Após o interrogatório, vão concerteza destruir a mesa e o assunto será esquecido. A arte tem de perdurar. É um produto do labor intelectual humano, logo é cultura!
Filipa era hábil na disciplina de Química. O colégio tinha um laboratório bem equipado, onde os alunos executavam alguns trabalhos práticos. Pé-ante-pé, Filipa foi ao laboratório e colocou, num tabuleiro, ácidos, bases, sais, óleos e vernizes. Regressou à sala de alunos e, com mestria, fez evolar o tríptico grandioso. A mesa voltou ao seu aspecto original. Sem uma nódoa.
Quando o tríptico passou por ela, a caminho do espaço sideral, Filipa acenou-lhe:
            - Assim, vais permanecer na memória da nossa geração e das gerações vindouras. Ninguém te esquecerá.
O Dr. Silvino Silvestre continuava o inquérito e notou algumas inflexões suspeitas nas declarações de Chico Gamito, um dos alunos mais desordeiros do colégio. Pregou-lhe duas bofetadas, mas o Chico, coitado, insistia na sua inocência. Silvino, com voz grave, ordenou:
            - Vamos reconstituir o crime no local. Vem comigo à sala de alunos.
No corredor interminável, ouvia-se o som do silêncio entrecortado pelo eco dos passos de Silvino, Albana e Chico. Ao entrarem na sala de alunos, Dona Albana, deparando-se com a mesa limpa e luzidia, gritou:
            - Milagre!
e caíu, desfalecida. Com abanos, e jarradas de água, conseguiram reanimá-la, no meio daquele vento suão insuportável.
            - O assunto está encerrado. Vão todos para casa,
rosnou Silvino, com um suspiro de indisfarçável alívio. Os três estavam lívidos.
Nessa noite, o Dr. Silvino encharcou-se em absinto. Dona Albana rezou à Virgem Santíssima. Chico Gamito espalhou na Vila o insólito acontecimento. Filipa Romana guardou o seu segredo.
A história tem sido transmitida de pais para filhos e, hoje, passado mais de meio século, todos os habitantes da Vila e arredores a sabem. O tríptico continua suspenso no espaço sideral e nunca se descobriu o seu autor. A arte tem destas coisas!