domingo, 30 de outubro de 2016

A Força


A força é um conceito,
Maneira de traduzir
O que vai no feito.
De induzir alterações,
Fazer avançar,
Iludir,
Ou regredir.

A força é persistência,
Crer nalguma coisa,
É paciência,
É insistência.

A força é delicadeza,
Subtileza,
Sensibilidade,
Amizade,
Não abdicar posições.

A força é ter intenções,
Opiniões,
Desagradar,
Afirmar,
E perguntar.

A força é amor,
Calor,
D'ambiente familiar.
Honestidade,
E humanidade.

A força é trabalhar,
Não ultrapassar.
Ver desigualdades,
E maldades.

A força é perdoar,
Não esquecer
Intenção
Que a animou.

A força é talhar forte,
Olhando a sorte
D'quem estimulou.

                                        (Fernando Fernandes, 2000)

É Possível Renascer? Uma pincelada na tela do desespero

Nota: Escrito em 1993. Entretanto, a Biotecnologia e interação Indústria-Universidade em Portugal evoluíram positivamente.


Lisboa, Jardim de St. Catarina.
Tarde fria de Janeiro.
Sol poente cor-de-rosa.
Complexo da Lisnave,
Cristo- Rei, em frente.
A meus pés Tejo barrento,
Outrora golfinhos a dançar.
Canichos as caudas abanando,
Par de namorados se beijando.

Pergunto-me:
É possível renascer?
É possível renascer da situação actual?

Da situação infernal
Onde grupos,
Ditos "dos Maiores",
Gerem e ditam,
Em nome da Democracia,
Os destinos dum Povo
Com oito séculos de História,
Colados a conceitos e ideias feitas,
Sem originalidade,
Plagiando e sujeitando-se
Às leis duma Economia recessiva,
Teoricamente progressiva,
Mas sem saída em perspectiva!

Não é baseada na honestidade,
Na igualdade de oportunidades,
Na pureza do espírito
E na inteligência!
Mas na selvagem concorrência,
Pouco mais!

Olhe-se ao Mercado,
À Política,
À Ciência.

Tudo é ultrapassar,
"Normalizar o passo".
Ser da C.E.E.,
A qual é
Traço orientador,
Não mais!

O que importa, por exemplo,
É ter abundância de "papers"
No curriculum.
Não importam os "makers"!
O que importa é o nome,
A jactância,
O abanar do penacho,
A quaisquer custos,
Não há lugar para os justos.
Importa é o inglório "tacho"!

É a cara da propaganda,
Na Rádio e Televisão.
É muito bem ser mencionado,
Ou mostrado.
Dá impulso!
E política posição!
E dinheiro!
E, aparentemente, progresso.

É muito bem ser referido
Pelo Ministro Tal, bendito!
Há, até, quem viva
Com esse único fito!
Que importa ser original,
Praticar ideias, tê-las em mente?
O que importa é copiar,
Dissimuladamente.

O que importa, por exemplo, é dizer
Há Biotecnologia,
Onde não há!
Há interação Indústria-Universidade
Onde, raramente, há!

O que interessa, afinal, é iludir!

É possível renascer?

É preciso ser menino,
Outra vez!
E beber o leite dourado
Com o coágulo fermentado
No seio da honradez!

No que digo,
Há melhoria da "raça" implícito,
Mas não é preciso
Matar,
Eliminar,
Destruir sonhos sobre-humanos.

É preciso reconhecer
O que há, em nós, do tal menino.
E amamentá-lo
Com Carinho,
Sem Parcimónia,
Com os Lábios,
Sábios,
Da Consciência
Que nos assaltará,
Mais cedo ou mais tarde,
Quer queiramos ou não,
Em noites tenebrosas
De Insónia
E de Solidão!
                            (Fernando Fernandes, Janeiro 1993)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Falta-me o tempo

Falta-me o tempo
O dia tem 24 horas
Trabalho muito
Não gozo liberdade

O meu salário é imenso
Tem de ser a passo
Do Mercado
Vem dos contribuintes
Não tão astronómico
Como outros
De origem misteriosa

Da pobreza
Que grassa
Falta-me tempo
Para pensar nela

Falta-me tempo
Para gastar
O meu salário
Quanto acumulo?

É preciso estimular
A Juventude
Para certa visão
De empreendorismo

Falta-me tempo
Para atender a ética
Não para acumular
Qual o sentido?
Falta-me tempo para meditar

Outros trabalham muito
Ou mais do que eu
Bons profissionais
Mas sem o passo
Do Mercado
Falta-me tempo
Para os considerar

Como pago esta bica
Que sorvo a correr
Neste café de esquina?
Esqueci a carteira
Não o cartão de crédito
Aceitarão com NIF?
Porra de vida
Falta-me o tempo

sábado, 15 de outubro de 2016

Uma história...

Fédor Darapski nasceu em Karskod, Polónia, em 1774. Foi incorporado no exército russo aos 22 anos de idade e cedo participou num motim pelo qual foi condenado à morte.
Num momento de compaixão, a imperatriz Catarina comutou a sentença para prisão perpétua com uma ração de 1 kg de pão escuro e 1 jarro de água fria por semana.
A natureza generosa e indulgente das autoridades russas levou-as a reconsiderar, e Fédor foi libertado no dia dos seus 90 anos pois, afinal, o motim tinha sido um fiasco!

(em “Order and Chaos. Laws of Energy and Entropy”, S. Angrist and L. Hepler, Pelican Books, 1973)

A história é falaciosa, a não ser que:

- o pão russo da época fornecesse muito mais kilocalorias do que o pão actual.
- Fédor tivesse sido mais hábil a obter comida por outras vias do que foi no motim onde esteve envolvido.
- ao longo dos anos os contadores de histórias tivessem “dourado a pílula” reduzindo a quantidade de pão sentenciada.
- a unidade kg referida fosse mais do que duas vezes a convencionada presentemente.

Onde está a falácia?

- 1 kg de pão/semana teria fornecido < 400 kcal/dia.
- Mesmo que o peso de Fédor tivesse descido a < 40 kg, teria necessitado, pelo menos, de ~1200 kcal/dia para sobreviver se dormisse 12h, e durante as outras 12h estivesse acordado, mas sentado sossegadamente na sua cela.
- A 1ª Lei da termodinâmica, tal como outras leis da natureza, não tem exceções para o Homem.
- Um ser humano tem de consumir uma determinada quantidade de energia/dia para manter a temperatura do seu corpo, sustentar os seus processos respiratório e circulatório e construir e substituir os seus tecidos.

Note-se:

Hidratos de carbono, lípidos e proteínas são as substâncias que fornecem a energia
(através de reações de combustão) e quase todo o material necessário para sustentar a vida e construir os tecidos.

A 1ª Lei da Termodinâmica:

- O cientista:

“Energia fornecida = Trabalho interno + Trabalho externo”

- O poeta (António Aleixo):

“Quem trabalha e mata a fome
Não come pão de ninguém
Quem não ganha o pão que come
Come sempre o pão de alguém”

- O provérbio:

“Quem cabritos vende e cabras não tem de algum lugar lhe vêm”

domingo, 24 de abril de 2016

Recordando uma Professora de Ciências

Saia justa, salto alto, casaco com dois lados (num dia era o vermelho, no outro era o preto), ar aparentemente severo, voz bem timbrada (moderada por uma pastilha “Valda”), gesto de mãos em sintonia com a exposição dos assuntos, um perfume inesquecível, e uma didática memorável.

Assim era a nossa professora de ciências geográfico-naturais e de fisico-química no Externato D. Sancho II, Mértola (1956-62). Chamava-se Idalina, era farmacêutica, directora técnica da farmácia Godinho, e tinha estado anteriormente numa farmácia em Alcoutim. Ao que se diz esteve para ser minha tia por afinidade. Idalina rima com Mirtilina!...

O meu interesse pela física e pela química foi estimulado por ela. Ainda guardo, desses tempos, um frasco de água de cal usada para detectar CO2. Na farmácia Melo adquiri tubos de ensaio e alguns reagentes (por exemplo, licor de Fehling para detectar glicose) e uma retorta para a destilação da madeira (quase pegando fogo à casa!). E, para culminar, a tentativa de recarregar pilhas secas com o Zé Eduardo Rodrigues (“Cré”). Um “empreendimento” que resultou em falência total…
A verdade é que durante as minhas aulas de física e química, ao longo dos anos, a didática da professora Idalina vem sempre à minha memória.

sábado, 23 de abril de 2016

O Regresso de D. Sebastião

D. Sebastião voltou 
Envolto em nevoeiro
Armado pioneiro 
Salvador da Pátria 
Em dor
Num fosso

Não é mais o ingénuo moço
Frequentou o estrangeiro 
Filiou-se em seitas 
É curandeiro de muitas maleitas

É professor 
Cientista
Artista
Investigador

Domina as lideranças
A economia 
As finanças 
E a filosofia

É influente na política 
Dos independentes 
Confronta ministros e gabinetes 
Quase sempre ausente 
Na parada dos seus tenentes 
Quais paquetes! 
É “tu cá, tu lá”
Com Bruxelas
Conhece corredores
Janelas 
E gestores

É poliglota 
Pratica pelota com proletários
Ténis com turistas
Golf com empresários 
Natação com desportistas 
E gamão com coristas

Toca piano 
Monta a cavalo 
Pinta o pano 
Com traço abstracto 
Escreve poesia
Canta fado em noites de farra 
E sublimado com histeria

Perseguido p’las informações 
E mui comentado 
P’la garra 
Com que interpreta variações

Gosta de sexo 
Não lhe importa o nexo 
Ama por dissimulação 
Mão sobre mão
P’ra que vejam a encenação 
Do amor 
Com compreensão 
Amizade 
E vivência em comunhão

O tempo não existe p’ra D. Sebastião 
Passado, presente e futuro 
São p’ra ele uma ilusão 
Da percepção

O povo aclamou o seu regresso 
A democracia o seu ingresso

Eis senão 
Quando um moço imberbe 
Leitor insaciável 
Observador externo imparcial 
Filho dum general de D. Sebastião 
Desfechou ao Pai em tom coloquial 
Esta questão: 
- D.Sebastião move-se a grande velocidade 
Tem um cérebro contraído diminuído 
Sem igualdade na minha dimensão 
O dia dele tem fracções de segundo 
O meu tem horas, dias, anos 
Uma imensidão! 

Atalhou o general: 
- Acaba com a fantasia
Da reflexão
Precisas experiência da vida 
Vivida! 
Então
Aprenderás a magia!

O moço calou-se 
Mas fixou-se na sua questão 
E murmurou: 
- Um dia compreender vão 
Ler
Tem um tempo de horas, dias, anos 
De prazer 
Uma imensidão
Afinal D. Sebastião não existe 
É uma ilusão 
Da percepção

Recordando um Professor de Matemática

Domínio da matéria, clareza e entusiasmo na transmissão de conhecimentos era o timbre do nosso 1º professor de matemática no Externato D. Sancho II, Mértola (1956-57). Chamava-se Baptista, vinha de Beja e estimulou o meu gosto pelas aplicações da matemática.

Eu tinha então 11 anos de idade, mas jamais esqueci o momento em que ele, andando dum lado para outro com um brilhozinho  nos olhos, nos falou sobre Le Verrier, matemático francês. A que propósito?

O planeta Urano foi descoberto em 1781 por Herschel. A teoria da gravidade de Newton era já a “jóia da coroa” no estudo do movimento dos planetas e previsão das suas órbitas em torno do Sol. No entanto, a órbita de Urano calculada pela teoria de Newton, levando em conta apenas 7 planetas, não coincidia com a observada pelos astrónomos. Então, Le Verrier baseado unicamente nos seus cálculos matemáticos sugeriu a existência dum outro planeta. Em 1846, o astrónomo Galle descobriu o oitavo planeta, Neptuno, com uma precisão de +- 1 grau relativamente à previsão de Le Verrier.

Urbain Le Verrier

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Solidão

Quando a solidão me envolve
Na ausência
Das palavras
Da comunicação gestual
Da expressão facial
Das atitudes
O tempo parece-me infinito

Que a congelação do que sonhei
Me faça num instante
Naquele instante 
De visão sobrenatural
Ver o que queria fazer
Livremente
Mas que afinal
Não era livre de querer

Saudade

É a sensação
Duma solidão
Indescritível

Inda agora
O momento
Está presente
Mas já o sinto
Ausente

As cores
A luz do Sol
As sombras
Têm tonalidades
Estranhas

O presente
E o passado
Unem-se
Numa saudade
Imensa

Lobo do Mar...

Ao Manuel Rosa Nunes, Mano Velho, Lobo do Mar, Almirante das Barcaças do Mar da Palha (na ocasião da sua aposentação):

Subiste na vida a pulso
O impulso veio de dentro
Do teu Ser
Ajudaste e ensinaste
A saber
Três gerações
P’la nossa a começar

Saudosos anos sessenta
Laboratório de Radioquímica
Bigodinho à Valentino
Moço elegante
Que o minúsculo grama
Que hoje lhe assenta
Não dá p’ra eclipsar

Sofreste injustiça flagrante
Tua resposta foi brilhante
Ir em frente e labutar!
Com o sorriso divino
Dum paladino

“Por detrás dum grã Homem
Há sempre uma grã Mulher”
Diz o povo português
“Cherchez la femme” diz o francês

Ei-la, Custódia
A musa
Alentejana de gema
Que inspirou a tua vida
Como um poema

Eça de Queiroz escreveu
“Lisboa é uma cidade doceira
Como Paris é uma cidade intelectual
Paris cria a ideia e Lisboa o pastel”

É claro que o escritor
Não conheceu o cinzel
Do Manel
Que diga-se entre nós
Não dispensa o bom farnel...

E o que em Almada tá fechado
No tal “segredo”
Com biombo disfarçado
Seja agora espalhado
P’los filhos e p’los netos
Não dá mais p’ra “arrecadari”
Homem!
Daqui a nada
Tens a arca a “arrebentari”

Com um abraço amigo,
Fernando Fernandes 6/10/2008

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Recordações

Era como se adivinhasse
A solidão
Que se iria seguir
O rapazinho inscrevia
Na parede secular
Com lápis escolar
Datas de reuniões familiares
Que sentia calorosas
Que jamais reviveria
Gravou
Na memória da parede
Frases dos adultos
Sons dos copos a tilintar
O cheiro
O sabor da comida fumegante
Os olhares
O calor quente da família
Contra o frio do inverno
E a cheia do rio
Que rugia lá fora
Muitos anos passados
Numa tarde de festa
Na sala secular
Já adulto
Copo de tinto na mão
Palavra solta
Maré de confidências
Mostrou a um tio querido
As inscrições
Contavam uma dúzia
Eram datas importantes
O tio recordava-as na perfeição
Recordações vivas!
Ao sabor dum golo do tinto
O tio afinou a voz de alto
Abraçou o sobrinho
E espalhou o refrão
Duma alentejana canção
Pela sala dos convivas

O Aprendiz de Feiticeiro

O aprendiz de feiticeiro
É um arquétipo
Que cria raiz
No terreiro das instituições
É um tipo
Originário do País
Ou do estrangeiro
Tem aspirações
Fala de mansinho
Devagarinho
É insinuante
Elegante
Por vezes usa óculos
Redondinhos
Miopes à cientista
É um artista
Na sua ascensão
Nunca diz não
Ao amigo
Que lhe deu a mão
É forreta
Não dá um tostão
P'ro progresso
Da instituição
Sempre presente
No ingresso
De uma posição
Sempre ausente
Quando pressente
A participação
E quando sente
Que já tem raiz
No terreiro da instituição
Levanta o nariz
Inspira forte
Desfere a estocada
De morte
No amigo
Que lhe deu a mão
Mas... o amigo
Não morreu
Renasceu

O Tríptico


O Dr. Silvino Silvestre, advogado e director do colégio da Vila, deu um murro na secretária de mogno e o tampo de vidro explodiu, qual bomba, sob o olhar perplexo de Dona Albana Infante, a vigilante do colégio. Estava furioso e não era razão para menos. Nessa tórrida manhã de Maio de 1960 com um vento suão que se metia pelos ossos, tinha aparecido desenhado, a todo o comprimento do tampo da mesa da sala de alunos, o membro dum equídio. Os respectivos acessórios, isto é, os testículos do animal, eram de tal forma descomonais que caíam, em folhos, pelas abas da mesa. A ira do Dr. Silvino, porém, devia-se mais às evidentes implicações que todo este imbróglio ia provocar na Vila do que à própria natureza do desenho. Homem de sensibilidade requintada, quando passou os olhos pelo desenho, alertado por Dona Albana para aquela obscenidade, assim que, ainda ensonado, chegou ao colégio, vislumbrou o traço correcto, as sombras impecáveis e a perspectiva tridimensional perfeita daquele tríptico surrealista. E, murmurou:
            - Um chalado com classe, um artista em potência. Qual é o significado deste desenho?
Dona Albana, notou o quase imperceptível movimento dos lábios do Dr. Silvino.
            - Senhor Doutor é urgente que se actue em conformidade.
            - Concerteza Dona Albana.
            - O que vai fazer Senhor Doutor?
            - Um inquérito aos alunos. Declare, por favor, a suspensão das aulas por hoje, mande as meninas para casa e convoque todos os alunos para um interrogatório esta tarde, a partir das 14h.
            - Muito bem, Senhor Doutor.
O Dr. Silvino foi almoçar, agoniado. Lembrou-se que dias antes, naquela mesma mesa do restaurante habitual, após uma farra monumental com amigos da Vila, pelas 3h da madrugada, apareceu uma patrulha da GNR com a declaração, detalhada, de uma multa por deficiente estacionamento do seu automóvel. Com os olhos enevoados pelo absinto que não perdoava, sacou dum lápis vermelho da sua descambada pasta, pegou na declaração e escreveu: "Três erros de ortografia. Reprovado!". O incidente foi de imediato sanado, com um sorriso subserviente da patrulha.
            - Como posso eu, Silvino, irreverente, teimoso, amante da independência, da boémia, da contradição, do espírito de humor, julgar um aluno que, afinal, fez um “manguito” monumental, de cariz campestre, a todos nós e à situação constrangedora deste País de merda?
O Dr. Silvino remoia as suas interrogações com um carapau frito em molho de escabeche. E, recordou, que dois anos antes, em 1958, tinha proibido, por imposição superior, a saída dos alunos do colégio quando Humberto Delgado, em campanha eleitoral, visitou a Vila.
Dona Albana Infante era uma "instituição" dentro do colégio. Mulher respeitável, quase com setenta anos, não descuidava as “suas meninas e os seus meninos”. Na qualidade de vigilante do colégio misto comandava, entre outras coisas, os recreios e garantia, aparentemente com extrema rigidez, a separação dos sexos. Contudo, fazia olho grosso aos namoricos e deliciava-se a entrever futuros risonhos!
Filipa Romana era uma das alunas do colégio. Nos seus quinze anos, esbelta e de olhos verdes, inspirava juras de amor eterno e poemas exaltados. Quando Dona Albana transmitiu a ordem do Dr. Silvino para as meninas irem para casa, Filipa escondeu-se num armário da casa de banho.
Enquanto o inquérito aos alunos decorria, Filipa entrou na sala de alunos e ficou estupefacta ao olhar para o enorme tríptico. Tal como Silvino, reconheceu de imediato uma mão de artista na animalesca gravura.
- Raios me partam se isto se pode perder. Após o interrogatório, vão concerteza destruir a mesa e o assunto será esquecido. A arte tem de perdurar. É um produto do labor intelectual humano, logo é cultura!
Filipa era hábil na disciplina de Química. O colégio tinha um laboratório bem equipado, onde os alunos executavam alguns trabalhos práticos. Pé-ante-pé, Filipa foi ao laboratório e colocou, num tabuleiro, ácidos, bases, sais, óleos e vernizes. Regressou à sala de alunos e, com mestria, fez evolar o tríptico grandioso. A mesa voltou ao seu aspecto original. Sem uma nódoa.
Quando o tríptico passou por ela, a caminho do espaço sideral, Filipa acenou-lhe:
            - Assim, vais permanecer na memória da nossa geração e das gerações vindouras. Ninguém te esquecerá.
O Dr. Silvino Silvestre continuava o inquérito e notou algumas inflexões suspeitas nas declarações de Chico Gamito, um dos alunos mais desordeiros do colégio. Pregou-lhe duas bofetadas, mas o Chico, coitado, insistia na sua inocência. Silvino, com voz grave, ordenou:
            - Vamos reconstituir o crime no local. Vem comigo à sala de alunos.
No corredor interminável, ouvia-se o som do silêncio entrecortado pelo eco dos passos de Silvino, Albana e Chico. Ao entrarem na sala de alunos, Dona Albana, deparando-se com a mesa limpa e luzidia, gritou:
            - Milagre!
e caíu, desfalecida. Com abanos, e jarradas de água, conseguiram reanimá-la, no meio daquele vento suão insuportável.
            - O assunto está encerrado. Vão todos para casa,
rosnou Silvino, com um suspiro de indisfarçável alívio. Os três estavam lívidos.
Nessa noite, o Dr. Silvino encharcou-se em absinto. Dona Albana rezou à Virgem Santíssima. Chico Gamito espalhou na Vila o insólito acontecimento. Filipa Romana guardou o seu segredo.
A história tem sido transmitida de pais para filhos e, hoje, passado mais de meio século, todos os habitantes da Vila e arredores a sabem. O tríptico continua suspenso no espaço sideral e nunca se descobriu o seu autor. A arte tem destas coisas!

domingo, 17 de abril de 2016

Mértola, a minha terra



Montanhas verdes e maravilhosas
Não existem nenhumas semelhantes
Com as suas encostas pedregosas
Que ao luar frio se tornam cintilantes.

Foi no rude sopé destas montanhas
Que vi p'la primeira vez a luz do dia
Que pratiquei as primeiras façanhas
E onde com grande loucura corria.

Nesta pequena vila pitoresca
Que o bonito azulado rio refresca
Passei e vivi época garrida.

Quando um dia tiver de a abandonar
Terei sempre vontade de voltar
À minha terra p'ra mim tão querida.

(Maio 1960)